20200811

Um dia, aos meus 17 anos, chegando em casa, ainda na rua pude ouvir o meu pai conversando com alguém lá dentro. Reclamava da minha mãe, dizia que era mesquinha e que não o compreendia, que só pensava nela mesma. Vociferava como um pastor furioso esconjurando no culto.

Quem o ouvia assim tão atentamente, em silêncio? Não podia ser a minha mãe, até porque não havia carro na garagem. Talvez algumas das minhas irmãs?

Abri e fechei o portão, abri e fechei a porta, esperando que os barulhos produzidos o fizessem perceber a minha presença e ele mudasse de assunto. A excomunhão continuava todavia.

Ninguém na cozinha. Apenas um lugar ocupado no porta-chaves. O telefone na sala permanecia no gancho. A voz do meu pai ecoava pela casa, firme em suas acusações. Os quartos estavam vazios, soterrados de injúrias e lamúrias. O palavreado vinha do banheiro, eu podia escutar a água do chuveiro escorrendo em meio às palavras de ódio e ressentimento.

Bati na porta e perguntei “Pai?”

Silêncio. Só as infinitas gotas caindo no chão e se esvaindo pelo ralo.

“Que foi, meu filho?”

Vacilei: “Tás... falando com quem?” A água se esgota, o registro é fechado. Algumas gotas persistem na canalização.

“Ah, com um cara aqui!”

Acho que balbuciei um “ah tá” e voltei para o meu quarto.

Das duas uma: ou o meu pai tem relações íntimas com homens no banheiro ou ele fala sozinho. De qualquer forma, eu sou igual a ele.

Por isso sempre hesito quando alguém me pergunta se pareço mais com o meu pai ou com a minha mãe. Meu ímpeto é responder com a minha mãe, óbvio. Uma pessoa doce, criativa, resolvida profissionalmente. Isso seria, entretanto, declarar com quem eu quero parecer. Fugir das evidências. Do meu modo de reagir violentamente, de mentir com frequência e não praticar esportes. Essas são também algumas características que me aproximam do meu pai. Meu grande contraexemplo. Tudo o que eu não queria ser. Mas que eu preciso aprender a amar?